TORRE

Encastelada.
Hoje completo quarenta dias em minha torre.
Suspensa, segundo andar.
Pela fresta da janela espio a rua e vejo alguns transeuntes circulando logo cedo.
A corneta não tocou.
Não há passagem livre (na consciência) para se estar ali, na rua, fora das paredes.
Mas o alarme da fome soou.
A campainha do aluguel que já venceu, alardeou.
A sineta do armário vazio tilintou e um gemido doído saiu da boca de quem quebrou o isolamento.
Inconscientes transitam eles e elas lá embaixo, na rua, pela rua. Pela rua.

Eu, encastelada no segundo andar do meu prédio avisto ao longe máscaras andando pela avenida.
Também avisto rostos nus e apreensivos. Passos largos pensando: "se eu for rápido, voltarei mais rápido pra casa".
Esperança!
Desassossego de quem deixou as crianças pra trás. Sozinhas no chão do quarto ou no tapete da sala (aqueles que tem sala).
Anônimos aguardam seiscentos reais. Não têm mais nem seis reais no bolso.

Da minha torre faço uma oração. Longa. Silenciosa. Na minha torre.
Por dentro uma voz brada consoante e atravessa a garganta mas pára. Não sai.
Na minha torre.
Sufoco palavras que não posso dizer, mas que giram, giram, giram na cabeça.
São momentos de inquietude nos mesmos passos daqueles e daquelas que passaram pela minha rua hoje cedo. Na minha rua.

Do chão da avenida, quem olha pro alto avista a minha torre.
Talvez não note que estou tomando a fresca pela fresta da janela.
Sou invisível para eles, na rua.
Eles são invisíveis para tantos encastelados.
Sinto, de longe, a agitação interna sobre o hoje e a incerteza sobre o amanhã.
Eu, na minha torre.
Eles e elas, na rua. Na (minha) rua.

Encastelada esperando que passe este outono e que o inverno chegue quente.
Quente de paz, alegria, amores, sabores, abraços, contornos de mãos, beijos suaves.
Calor de gente que trabalha, que é honesta, capaz, forte, simples e tão importante (anônima!).
Minha rua voltará a sorrir.
Meu castelo voltará a receber a luz do sol com sorriso na janela.
E depois virá o verão e verei o sol da minha torre, na minha rua.
O sol.

by Adriana Drih Paris
no 40º dia da Quarentena
29/04/2020



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