Escritos - terceira parte: A FEBRE
a febre
foi minha amiga
um dia e meio
com ela
pude atravessar
florestas
sem ela
não veria
duendes
a febre foi minha amiga um dia e meio
o suor foi
o único banho do dia
(o único barco do dia)
(único dia embarcado)
e não vi o sol
não vi a luz
não vi a chuva
não vi a fumaça em conclave
só escutei
o galopar
de cavalos mansos
e vi as estrelas
brilhando cintilantes
no teto do quarto
a febre foi minha amiga um dia e meio
e com ela
pude descobrir
que sou carne
eu vi gazelas adormecidas
caminhei sobre pontes estelares
eu vi ruir edifícios de papel crepom
a febre foi minha amiga um dia e meio
sem ela
eu não veria em mim
personagens risonhos
com ela
desvendei
o enigma do retorno
eu vi a fome do mundo
eu vi a guerra e a paz
retorno à lucidez
que na loucura dos dias
se perde e se esconde
a febre
foi minha amiga
um dia e meio
e mesmo com ela
se fez presente
o silêncio
eu não mais
me ouvia
nem via minhas mãos
a câmara azulejada
foi sede
da sauna não desejada
e eu queimava
vendo um carrossel
à beira do leito
(seria o mesmo
que abrigava o galopar
daqueles cavalos mansos?)
alguns pássaros pousaram
em meus ombros
e me olhavam curiosos
a febre foi minha amiga um dia e meio
e na metade
do segundo dia
tornei a ficar só
tornei a ficar sóbria
tornei a ficar
.
.
.
só aí percebi
que a febre
estava na multidão

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