Da fuga ao encontro.

    E eu, fugindo do carnaval, fui ler a Evaristo. Mulher que está na História e nas Letras faz um tempo, e que bom isso. É difícil estar nos livros antes de se morrer. 

    No meio da minha fuga do samba, em pleno feriado carnavalesco, querendo distância da folia, das multidões, da cantoria suada e dos corpos brilhantes de purpurina e muita transpiração nas ruas da cidade, de cabeça nos contos da Evaristo fui, sem querer, de encontro ao carnaval.

    Lá no conto Duzu-Querença teve festa. Teve fantasia colorida. Teve carnaval. Teve fantasia na mente e na roupa da pobre menina-mulher-idosa. E ela dançava meio aos seus próprios devaneios e também sambava tentando viver como Deus mandava e como foi levada, pela vida e por seus pais, pra uma cidade bem longe da sua de origem e destinada a conhecer o o subúrbio do subúrbio da vida humilde.

    A menina-mulher-idosa tinha sonho de voar. E voar. E eu voei junto com ela, por entre lençóis no varal com o vento batendo na roupa que agitada, voava parada. Com um vento suave no rosto, com olhos fechados, tentando ver as nuvens por cima de nuvens e (me) ver com meus próprios olhos, o melhor da vida, eu voei.

    Melhor que ontem, melhor que eu mesma, com o melhor do pior em mim, para sempre querer algo mais (e melhor) da vivência.

    Percebi que há tantas Duzu-Querenças por aí. Pelos morros. Pelas vilas. Por avenidas. Nos becos e sob marquises. Debaixo de pontes sem rios. Sob passarelas inundadas de suor, sem um carnaval para enfeitar fevereiro ou no carnaval com tempestades anunciadas. Ou em verões sem sequer ter uma garoa para acalmar o calor, nem banho de chuva.

    Pensei em quantas Duzus existiram e ainda estão por lugares. Entre lugares. Entre vida e morte. Quantas outras Duzus lambem seus dedos gordurosos recolhendo o último grão de arroz debaixo das unhas sujas e de quantas Querenças existiram e ainda estão por lugares. Entre lugares. Entre vida e morte. Quantas Querenças sonham como as Duzus sonharam. 

    Parei por algumas horas e no meu tempo resolvi que escrever pode ser o meu melhor carnaval. As emoções brilhando nas linhas que surgem meio à purpurina e vestidos coloridos, brilhantes, curtos, apertados, de algumas folhas que restaram do caderno velho-antigo-fora-de-moda-amarelado-ultrapassado dormindo solitário na gaveta. Ou meu melhor carnaval com minhas emoções fogueteando purpurinadas pelo teclado suave do mais moderno notebook que a Duzu e a Querença não conheceram. Não foram da era digital. O carnaval está nas redes. Não há saída. Por isso, fugi em Evaristo.

    Quantas fantasias ainda desfilarão pela minha cabeça, pelas cabeças de Duzus e Querenças. Quantos sonhos, adormecidos, podem retornar do modo stand by para cem realizações reconstruídas por novos caminhos e tentativas de continuar fugindo do carnaval. Embarcar em outro navio para um novo caminho e destino além fronteira. Há dezenas de barreiras humanas entre nós.

    Fugir do carnaval para a leitura de Evaristo me conduziu ao carnaval da Duzu e da Querença que enfeitava a vida e o vestido, aguardando a folia dentro de si para conhecer sua própria vida. E no dia seguinte, sonhar um pouco mais, distante da realidade, onde o sofrer será legalmente proibido. Banido. Desconhecido. Sofrer não será permitido. 

    E eu, na alegoria representativa de pensamentos tão meus, ornamentei um enredo curto para descrever meu encantamento, nada e muito carnavalesco a um tempo só, de como os contos lidos viram outros contos para encantar alguns breves minutos de vida, para além de mais alguns dias de carnaval aos Olhos D'Água de Evaristo, em mim.



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Imagem da capa do livro de Conceição Evaristo: Olhos D'Água





    

Comentários

  1. Esse conto revela uma interessante jornada literária durante o período de carnaval. Adriana Paris, inicialmente em busca de refúgio da agitação carnavalesca, se depara com os contos de Evaristo, personagem que transcende o tempo e a história.

    Ao entrar nos contos, especialmente em "Duzu-Querença", Adriana Paris encontra uma festa e um carnaval inesperados. A personagem Duzu, uma menina-mulher-idosa, se destaca por seus devaneios, sua dança entre sonhos e a realidade, e o desejo de voar. Essa jornada de imaginação leva Adriana Paris a voar junto com Duzu, experimentando uma sensação de liberdade e contemplação.

    A reflexão sobre as Duzus e Querenças presentes em diferentes lugares e situações, suas aspirações e sonhos compartilhados, adiciona uma dimensão humana profunda ao texto. O ato de escrever é então encarado como o próprio carnaval de Adriana Paris, uma celebração das emoções, brilhando como purpurina nas linhas das palavras.

    A transição do caderno velho para o teclado moderno representa uma mudança de eras, mas a essência do carnaval literário permanece. A fuga do carnaval tradicional se transforma em uma imersão nos carnavais internos das personagens de Evaristo.

    No final, o texto destaca a capacidade da leitura e da escrita de criar mundos encantados e fugir temporariamente da realidade. Uma celebração íntima que vai além das festividades tradicionais, conectando-se com as histórias e personagens que transcendem as barreiras do tempo e do espaço.

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