LIVROS QUE (NÃO) VOAM


Mário de Andrade, poeta modernista, consagrado da literatura brasileira, conhecido dentro e fora do Brasil, com seus escritos incomodou muita gente especialmente críticos literários. Deu nome à biblioteca que é sediada à Rua da Consolação em São Paulo.
E foi na biblioteca Mário de Andrade que, numa terça de inverno onde a temperatura não passou dos quatorze graus mas que com o vento cortante a sensação era de apenas oito, que vi livros flutuarem.
Logo que adentrei no departamento de livros circulantes que começa no térreo, já era possível ver uns dois ou três livros flutuarem sobre algumas mesas. 
Fiquei muito intrigada, mas percebi que todos os demais usuários da biblioteca agiam naturalmente. Faziam consultas ao computador, outros se valiam apenas do sinal do wi-fi e teclavam em seus celulares, muitos outros liam recostados nas cadeiras ou nas poltronas que há por todo o andar térreo.
O que eu procurava estava no primeiro andar. 
Subi calmamente e a cada degrau que eu ascendia, olhando para baixo revia os livros flutuarem, quase voarem e vez ou outra suas páginas serem viradas. Como pode isto?
Procurei a estante que guardava certamente títulos da área que me interessava e como num labirinto entrava e saía dos corredores, lendo as plaquetas que há em todas elas, como que viajando por aquele arsenal de páginas e páginas escritas, encadernadas, ilustradas, numeradas, etiquetadas.
Quando estava em minha paulatina andança pelo quarto corredor observei que havia um computador sobre uma bancada cujo cursor na tela agitava-se a procura de links. 
Estava conectado em algum site e vez ou outra uma nova página surgia na tela, como que num passe de mágica. Pensei que deveria ser algum programa de rodagem automática de temas interessantes. para chamar a atenção dos usuários da biblioteca. Algo ilustrativo.
Continuei por entre as estantes e vi mais dois livros cujas páginas viravam sozinhas logo do lado direito da mesma bancada que se entendia por todo o andar, de ponta a ponta.
Um deles flutuava e outro estava sobre uma mesa bem no fim do espaço para leituras.
A temperatura na biblioteca era tão agradável. Devia estar uns 25 graus. Aquele quentinho gostoso num dia de frio congelante da porta pra fora. O ar condicionado da Mário de Andrade estava no ponto certo.
Finalmente encontrei o livro que procurava. Avistei um lugar vazio entre duas pessoas que pareciam já estarem no final de suas pesquisas. Uma ajeitava seus papéis numa pasta e a outra já guardava seu notebook na sua mochila.
Puxei a cadeira e me sentei.
Comecei a folhear as páginas até chegar ao capítulo específico para iniciar minha leitura e minhas anotações quando as duas pessoas que acabei de citar levantaram-se, quase que simultaneamente, e foram embora.
Passados uns dez minutos senti um certo cheiro estranho que não consegui identificar.
Mais atentamente quando olho para minha esquerda, no lugar que a mulher desocupara pouco antes, um livro pousou sobre a bancada e suas páginas a virarem a cada um minuto e meio mais ou menos.
Dei uma espichada nos olhos e o computador cuja tela também tinha o cursor a subir e a descer continuava no mesmo ritmo.
Parei.
Respirei.
Pensei: três ou quatro livros flutuando no térreo. Outros dois no primeiro andar, um flutuava e outro sobre a mesa. Um computador que trabalhava sozinho nas buscas por páginas de um site qualquer. Pra finalizar, agora ao meu lado, um livro repousado sobre a bancada, a virar suas páginas calmamente.
Eu estava a delirar, só podia ser esta a explicação.
Afinal o relógio já apontava que as horas estavam quase no meio da tarde e eu estava só com o lanchinho da manhã, não havia parado para almoçar. Era fome!
Estava tão frio lá fora que preferi entrar na Mário de Andrade, fazer minha pesquisa e o quanto antes terminasse, tomaria o ônibus pra voltar pra casa. Daí sim, banho, jantar, cama e cobertor.
Mas comecei a ficar um tanto aflita e a perceber que ninguém mais além de mim, se importava com tal movimentação de livros e tela do computador.
Fechei os olhos, respirei mais fundo, me concentrei. 
Fiquei assim uns quarenta segundos. 
Quando abri os olhos as lentes dos meus óculos de leitura estavam bastante embaçadas.
Uso óculos desde os meus onze anos. Adorei o dia que minha mãe me levou ao oculista e ele disse que eu precisava usar óculos. Desde ainda muito pequena eu queria ter uma armação vermelha e finalmente não estava enxergando tão bem as letras da lousa quando a professora de História escrevia os textos na sétima série. Sempre achei que usar óculos dava um ar de intelectualidade nas pessoas (mesmo eu ainda não sabendo o que era intelectualidade, enfim!).
Com as lentes embaçadas, retiro meu óculos para limpá-las e quando torno a olhar pra cadeira à minha esquerda vejo um rapaz de uns vinte e pouco anos, sujo, barbudo, de touca, apenas uma calça de moletom e uma blusa com zíper bem gasta e suja, aparentando não tomar banho há algumas semanas.
Mais adiante vejo outros dois homens, um velho e um de meia idade, em trajes muito simples, quase da mesma forma. Ambos de blusas rasgadas, ora no cotovelo ou no punho, meias sem elástico descidas até o tornozelo, sapatos surrados, solas gastas.     
À frente do computador um rapaz mais jovem que o que estava à minha esquerda, mexendo com o mouse pra cima e pra baixo sem parar e a sussurrar palavras inteligíveis. Numa biblioteca não podemos falar alto nem conversar, certamente ele sabia disso.
Levantei-me, não por medo, apenas para voltar ao térreo e verificar como estavam aqueles livros flutuantes que vi logo que entrei na biblioteca. 
Mantive-me sem óculos.
Depositei na prateleira o livro que eu estava a manusear, caminhei um tanto mais rápido do que quando subi. Queria logo estar no térreo.
Me deparei com outros três homens (todos eram homens, não havia nenhuma mulher nos lugares destes livros flutuantes) que folheavam livros da literatura brasileira, encolhidos em suas cadeiras, com o olhar atento às páginas que tinham à frente.
Foi aí que percebi haver na biblioteca, em uma tarde gélida do mês de julho, sete pessoas em situação de rua, que estavam ali, num ambiente silencioso, aconchegante, limpo e quentinho da Mário de Andrade, se reconfortando entre poesias e algumas histórias de ficção, viajando por entre livros e fugindo do frio (e da realidade de cada um) que estava lá fora.
O mais jovem de todos aparentava ser também usuário de drogas.
Quietos e invisíveis.
Esquecidos e invisíveis.
Mudos e invisíveis.
Invisíveis.
Eu tinha razão quando pensei rapidamente que livros não voam, não flutuam nem viram suas páginas osmoticamente. 
Voam sim os pensamentos e desejos destas pessoas.
Que só serão vistas por outro/mais alguém que ousar se despir de qualquer acessório, de qualquer aparato, de qualquer barreira, e deixar seu coração perceber que há homens (e mulheres também) que buscam um calor entre humanos (por enquanto serve o saído de um aparelho de ar condicionado) e o desejo de pertencerem à alguma história. 
Flutuam em desejos de inserção neste mundo. 
Serem vistos. 
Eles têm vida.
A real invisibilidade de moradores de rua num espaço público foi o que mais apreendi na minha visita à Mário de Andrade.
Eu vi mas nada fiz.
Minha pesquisa acadêmica ficará pra depois.

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