AMARELINHA

A grama desponta tão rápida quanto numa época em que meus cabelos cresciam.
Demasiado lembrar que algumas décadas se passaram e continuo a olhar para o espelho.
Acompanho cada novo fio cor de algodão que surge por entre as mechas castanhas.
As nuvens parecem trotar no céu e o sol se esconde mais depressa para que a noite chegue.
Ah! quantas noites vi a lua desmoronar...
Vi também alguns marcianos me olharem e desistirem de me levar pra longe.
Meus pensamentos certamente não caberiam na pequena nave.
Eles não aguentariam minhas perguntas.
Teriam respostas para todas elas?
...
A terra muda de cor a cada estação e vejo meu canteiro de bromélias se encherem a cada primavera.
No outono minhas árvores perdem suas folhas como se fossem cabelos a caírem no chão de terra.
Meus pés esbarram em gravetos que meus cães trouxeram do bosque para brincarem nas tardes quentes amenizadas pela brisa que vem do lago em direção à casa grande.
A rede estendida me aguarda pra um cochilo no fim de semana.
A grama desponta tão rápida quanto, quando menina, meus sonhos nasciam.
Demasiado lembrar que a maioria deles se fizeram reais. 
Outros foram deixados na gaveta.
...
Minha escrivaninha tem muitas gavetas. 
Assim como os sonhos dentro delas.
As nuvens continuam a correr hora a hora, fazendo noite, fazendo dia.
Ainda vejo as mesmas estrelas que via quando eu pulava corda olhando pra cima.
Sem tropeçar e conduzida por osmose a pular, a pular, a pular...
Só parava quando já cansada queria outra brincadeira. 
Amarelinha.
Eu era muito boa na amarelinha... um pé, dois pés, abaixa pega pedrinha...
Era veloz. 
Ia da casa um à casa dez mais rápida que todas as outras crianças das casas vizinhas.
A rua era o palco das brincadeiras.
Hoje, minha velocidade não é mais a mesma. 
Nem jogo mais amarelinha, nem pulo corda.
A rede estendida me aconchega em mais uma tarde de sábado.
Não tenho visitas, o telefone não toca e tenho duas xícaras postas à mesa.
A água ferve na chaleira e o pó de café está pronto pra receber um banho e transformar-se no líquido mais perfumado da cozinha.
Embaçando a vidraça com um aroma esfumaçado que inebria todo o meu mundo.
Duas xícaras. 
Somente uma pessoa à mesa.
Hoje ele não apareceu.
Observo o café esfriar.
Recolho a louça.
Lavo os talheres.
A grama parece não ter crescido nada desde a semana passada.
Não chove há dez dias. 
O solo está seco. 
As flores murchas. 
Os gravetos estalam.
Meus cães se foram com os marcianos.
...
Desenho o jogo da amarelinha com o pó de café que sobrou
No piso da varanda de casa.
Volto para a rede e me imagino com outras meninas dos tempos da escola 
A jogar pedrinhas e me ponho, de olhos fechados, a pular, a pular, a pular...
Minha menina não me abandonou.
Sou eu ali, ágil, travessa, feliz chegando mais uma vez
À casa de número dez desta brincadeira de criança.
...

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