C O N U R B A Ç Ã O - um breve conto.

   vila onde passei infância e adolescência não existe mais. A calmaria das ruas recém asfaltadas, as bicicletas no lugar dos carros, a bolinha de gude na calçada gramada, o bate papo despretensioso no portão, não existem mais (faz tempo). 

    Mas hoje foi um final de domingo bastante atípico, vez que do lado de fora da casa que habito, o congestionamento sonoro, marcadamente alto e um tanto distorcido, fez-se presente e, confesso, não foi um belo presente aos ouvidos.

    Era como se uma terceira ou quarta letra/canção pudesse nascer dos recortes que, por vezes, se encaixavam com duplo sentido ou sentido algum, mas se fazia existente.

   Minha escuta para além de uma função meramente biológica automática e não mais distinguindo de que lado(s) vinham respectivos sons, apenas identificava os estilos: um gospel e dois (ou três) funks. Os bailes e os cultos acontecem em horários muito semelhantes por aqui.

   Certamente, ainda nestes lugares (não deu pra saber bem se eram dois, três ou quatro cantorias distintas), jaziam pessoas ao redor de microfones e amplificadores para dar mais vida ao estranho concerto unificado, deveras totalmente desconsertado, quando somados no assombro do som que corria além de muros e quintais.

   Tudo ficou muito mais confuso quando, ao mesmo tempo, tocam pareados os estilos mencionados.

  Minha auscultação que já não queria, àquela altura, atinar com racionalidade e desprendimento, inevitavelmente, para alguém como eu, seria impossível não ser tomada pelo ímpeto, dentro da habilidade treinada para a atenção dispensada tentar, ainda por cima, concatenar a(s) letra(s) e perceber que quando tudo parecia refrão, saiu conectado a 'seguinte letra':

"- Senta, senta, senta... oh glória Jesus!

- Pai do céu perdoa... vem provar o gostinho dela...

- O povo de Deus... vem chupando no talento...

- Faz de novo Senhor... Voltei pra cachorrada...

- Faz morada... o bagulho vai ser de verdade...

..."

  O que saiu depois deste trecho de letra improvisada, não merece ser destacado neste registro, devido à auto censura que ouso proceder enquanto escrevo.

   Quando enfim, a vizinha de parede abre a janela e liga seu mega aparelho de som, aquele típico do final dos anos 90, com caixas acústicas de primeira categoria, super bem conservado, despontando A Loba de Alcione na bela voz da Glória Groove em parceria com a eterna e respeitada marrom, mesclado com um nada tímido karaokê.

    Enfim, me rendo!

  De fato, as fronteiras tornaram-se imperceptíveis, tamanha junção de vibes e sons em similar conurbação em geografia-sonora-(quase)única aos meus tímpanos já esmagados.

   Desisto de tentar continuar a leitura que me acompanhava até a sinfonia começar e me ligo na Netflix.


imagem da internet





    

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