me conta como morri

não me lembro da passagem nem do adeus
sinto um formigamento nas mãos e pés
e o leve frescor de um perfume que não identifico
(talvez azaleia ou jasmim com toque amadeirado)

vejo flores frescas e sonoras como o zumbido 
de abelhas escondidas colhendo seu pólen 
e eu - imóvel - percebo vultos que vão e vêm 
mas ninguém diz nada que eu possa entender

não há nitidez nas formas e nas vozes
que, parecendo silenciadas, ecoam com a luz turva
junto aos girassóis que plantei no final do verão 
e que despertados na última primavera, já estão murchos

feito chuva, lágrimas molham minha face e transbordam
de olhos que não os meus e que me fitam atônitos
não entendo muita coisa desta reunião de pessoas
que não me convidaram para o banquete servido 

há taças, pratos e talheres dançando uma valsa arredia
e não sinto meus calcanhares firmes no chão para o baile 
onde meu corpo pulsa calado e quieto permanece
embora por dentro com um turbilhão de manejos e sangue fluindo feito chafariz

muitos me olham, se afastam e quase não há sorrisos
há uma certa dor contida e uma despedida tácita e sombria
eu vejo abraços e apertos de mão
mas ninguém me abraça

não sinto o toque de dedos sobre minha pele ou minhas vestes 
: intocada permaneço e adormeço minuto a minuto

não há sinais de tempestade 
o céu parece esvair-se e a luz do sol começa a sumir
vejo luzes no teto e abajures de tons cinza boicotando alegrias
percebo que minha sonolência vai e vem com meus pensamentos

memórias intactas me seduzem em um deslocamento remoto para uns dias atrás
e um frio invade meu corpo inerte tornando possível aventar
a remota possibilidade de uma viagem não planejada:

vou encontrando, pouco a pouco, quem não está mais aqui
: meus amados cães,
  minha avó,
  na casa antiga que não existe mais,
  meu avô, 
  meu amado gato,
  o tio que nem cheguei a conhecer
  um colega de infância...

e a pergunta que demorei a concatenar veio
agora feito foguete de mil cores
com o voo de algumas borboletas metamorfoseadas
e que brotaram da minha mente ainda lúcida onde
até um minuto atrás me deixei levar pela dúvida;
agora formulo a pergunta em afirmação:

- me conta como morri.



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