RUAS DESERTAS



Os eleitos, encastelados no planalto sob o lábaro que ostentas estrelado, em um país sem brilho.
A luz apagou-se e, justamente ontem, um clarão inundou esta terra.
Mesmo assim, a cegueira perfila.
Vermes comem e saciam-se dos bolores que brotam dos cantos e de bocas imundas.
Risos.
Sanguessugas continuam arrancando a força do povo.
O povo arrancando os cabelos, quase sem força.
Tapas na mesa.
Microfones agora abertos.
Risos.
Jugulares e sangue quente.
Sangue.
Valas.
Lágrimas.
Mais bolor.
Vermes.
Bolor...
...
Cheguei ao 1.375º dia da quarentena.
As ruas agora desertas.
Os pássaros, em família, nos seus ninhos.
Não há carros, caminhões, buzinas, fumaça.
Não há vozes.
Na estrada somente meus passos e o barulho baixo de pedras pisadas.
Se eu continuar andando talvez eu chegue à Indonésia.
Posso fazer uma canoa com galhos de árvores que encontrar no caminho e pegar o mar quando o continente acabar.
Falta pouco para os últimos partirem.
Provavelmente, aqui, fique apenas eu.
Na minha bolha, ontem completei três anos e sete meses de confinamento.
E, da minha bolha, contemplei um resto de vida.
A minha.
...
Aprendi a fazer pão neste longo período de isolamento.
Também a cuidar da terra, a plantar e a colher.
Passei a criar galinhas e tomar os ovos para a fritada e para a massa de bolo.
Minha horta é variada e colorida.
Nos últimos anos saíram dela alguns bons quilos de abobrinha, cenoura, agrião, tomates e muitas, muitas batatas.
A água encanada não chega até aqui onde estou.
Ela vem até minha pia através do balde amarrado à corda que vai até o fundo do poço.
Fundo do poço.
- Me faz lembrar dos vermes e dos bolores daquele ano.
Puxadas de mão e a carretilha faz subir a água fresca.
Água.
...
Minha aparência está envelhecida.
Não há mais tinta para colorir os cabelos que saltam à vida sem tonalidade alguma.
Paradoxal envelhecer e querer mais vida.
Estão vindo os cabelos brancos há alguns anos.
E ainda quero vida.
Crescidos. Os cabelos. Brancos.
Não aparo as pontas.
E as pontas estão despontadas.
- Desapontada estou desde uns bons anos...
Eles, meus cabelos, descem para o meio das costas e esquentam meu pescoço.
Aquecem meu dorso.
...
A quarentena começou em março do ano de 2020.
Pensei que seriam apenas os quarenta dias.
Mas se passaram sessenta.
Depois mais cem dias e seis meses vieram.
Um ano.
...
Hoje, é o 1.375º dia da quarentena que não tem mais data para terminar.
Mas terminaram as escolas, as missas católicas, os cultos evangélicos, as indústrias, as fazendas, os povos indígenas, as festas de final de ano, os encontros de família, os shopping center, as academias.
Postos de combustíveis e agências bancárias não existem mais desde o ano passado.
Passado.
...
Encerraram-se as vivências humanas, porque quase não há mais humanos.
Sobraram escórias em púlpitos, com microfones de lapela a obrarem palavras vis à multidão de cadáveres.
Cadáveres.
Faz tempo que pararam de computar o número de mortos.
Isto porque há mais mortos do que vivos para contarem uns aos outros.
E mortos não contam.
Não falam.
Não comem.
Não amam.
Não brigam.        
Não votam.
...
Agora, ruas desertas.
O vento bate tão forte esta noite que não há mais silêncio.
As folhas das árvores gritam.
As folhas das árvores caem.
Tilintam no chão em revoada.
Os galhos se abraçam e muitos se quebram.
O vento é forte.
Ainda há muitos vermes e muito bolor nos cantos.
Não há mais encanto, nem brilho, nem pranto.
Quase não há choro.
Pois quase não há quem chore ou à quem chorar.
Talvez só reste eu.
...
Esta quarentena interminável me fez lembrar Blecaute.
Um dos meus livros preferidos da adolescência.
Mas, neste 1.375º dia da quarentena, me faltam Rindu e Mário.
Ou Mário e Martina, não sei que personagem eu seria.
Enfim.
Ruas desertas e corações amorfos.
Não há otimismo aqui, nestas minhas palavras. Eu sei.
Mas ainda há vermes e muito bolor por aí.


By Adriana Drih Paris.




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