ARGAMASSA
desassombrado pelas dobras das paredes
sem reboco, esgotadas pelo dissabor dos dias
da pobre vida do trabalhador
e ele, nada alinhado, dia a dia (na sombra)
na estação de trem da periferia mais longínqua,
atravessa quilômetros até um centro de cidade
que nem sabe que ele existe, mas dele precisa
para que a roda do motor não pare
a mistura diária como massa de bolo sem fermento,
de uma sobremesa que ele não come,
cobre as paredes que serão brancas
dos apartamentos brancos dos que são alvos
enquanto ele, não branco, mistura areia, água, cimento
tantos outros aditivos e assenta tijolos, blocos
azulejos, pisos e ele pisa
pisa com a bota de sola furada
(enquanto nele pisam de salto, de terno, de coturno)
a argamassa que cobre e funde a casa do outro
que nunca saberá quem fez
o seu confortável canto de descanso
...
ao final da tarde de pé na plataforma da estação
olhando nada além do que pode enxergar o pobre trabalhador
volta ao trem que o levará aos vinte metros quadrados
de um quadrado com uma porta só
blocos ajeitados em finais de semana
quando não precisou pegar o trem e ir até o centro,
nem ver do alto de arranha-céus naqueles dias
o céu que se diz para todos,
a revolver mais argamassa no ponto perfeito
com uma certeza de que na pobre vida dele - trabalhador
é assim mesmo, desde o avó e está tudo certo
(ele ainda não tem consciência que é dele que precisam
para aquela roda continuar a girar
e o capitalismo gritar: - continua!
- e não olha pra trás não peão)
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